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(19) 3422-8489secretaria@catedraldepiracicaba.org.brO amor a Deus passa pelos pobres
A Igreja, particularmente no Brasil, chama-nos durante o mês de setembro a mergulhar nas entranhas da sagradas escrituras. Assim, a é proposto o estudo do Livro do Deuteronômio, também conhecido, como a Segunda Lei.
O Deuteronômio é o quinto livro da Bíblia. Faz parte de um conjunto de cinco livros chamado Pentateuco. Trata-se da segunda apresentação da Lei de Deus ao povo, feita por Moisés, no fim dos 40 anos de travessia pelo deserto. A primeira apresentação foi feita pelo próprio Deus no monte Sinai, logo após a saída do Egito. Esta segunda apresentação da Lei, o Deuteronômio, é uma atualização ou releitura da mesma Lei de Deus em vista dos fatos novos, acontecidos depois da primeira edição. Entre uma edição e outra, houve longa caminhada histórica. Antes de chegar a ser um livro, o Deuteronômio era todo um movimento de renovação que vinha de longe. Começou na época do profeta Elias que suscitou uma reação muito forte contra a política do real que levava o povo a abandonar a fé no Senhor. A decisão real levou a destruição do Reino de Israel. Assim, para o povo do Reino de Judá tal fato impulsionou-o a implantar uma grande reforma, cujo objetivo era observar com maior fidelidade a Lei de Deus.
A reforma foi iniciada pelo rei Ezequias e continuada muito mais tarde pelo rei Josias, sobretudo quando o Livro da Lei foi encontrado no período da reforma do templo. Os sacerdotes levaram o “livro da Lei” ao rei e o leram diante dele.
O Deuteronômio se apresenta como o testamento de Moisés. Ocorreu que, no fim dos 40 anos de peregrinação pelo deserto, pouco antes de morrer, Moisés fez três discursos, dando ao povo as instruções finais, alertando sobre os perigos, indicando os caminhos a seguir e pedindo fidelidade a Deus, que os tinha acompanhado ao longo da travessia pelo deserto. O Movimento Deuteronomista recolhe todo esse espírito de renovação iniciada pela pregação dos profetas. Ele é o ponto de partida de toda uma releitura da história do povo de Deus. O Deuteronômio é o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos do Novo Testamento: mais de 200 vezes!
Sete temas centrais norteiam o deuteronômio: a finalidade objetiva e clara é levar o povo a observar melhor a Lei de Deus: “Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas contra vós: eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele. Porque disto depende a tua vida e o prolongamento dos teus dias”.
1º O perfume do amor. Ser a revelação do amor de Deus no meio dos povos: O amor de Deus é a chave para interpretar os fatos da história. Foi por amor que Deus tirou o povo do Egito.
2º Memória. Quem perde a memória perde o rumo na vida: Sem memória, o povo perde a sua identidade e o rumo da sua missão. Por isso, sem parar, do começo ao fim, o livro do Deuteronômio pede que o povo não esqueça nunca o seu passado.
3º Serviço. Pelo seu jeito de servir, o povo revela o rosto de Deus: Libertado da escravidão no Egito, o povo recebeu a missão de ser a revelação do rosto desse Deus no meio dos outros povos. “Eu, o Senhor, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te modelei, eu te pus como aliança do povo, como luz das nações”. Por isso, os que têm a função de governar devem ser para o povo aquilo que o próprio povo deve ser para toda a humanidade: “Abre a mão em favor do teu irmão, do teu humilde e do teu pobre em tua terra” (Dt 15,11). Essa frase é o lema do mês da Bíblia deste ano de 2020. Ser o povo eleito de Deus não é privilégio, mas é serviço, é missão. Nosso privilégio é poder servir os outros.
4º Êxodo. Viver em estado permanente de êxodo, de “saída”: Sem parar, falando ao povo, Moisés lembra e evoca o êxodo. Para eles, o êxodo não era um fato só do passado. Era o hoje deles. Era a experiência que estavam vivendo. Do começo ao fim, repete-se: Hoje lhes ensino! Hoje ordeno! Hoje proclamo. O livro do Deuteronômio pede que o povo viva em estado permanente de êxodo, pois a libertação não termina nunca, continua até hoje. Por isso, como diz o papa Francisco, temos de “ser uma Igreja em saída”.
5º Comunidade. “Entre vocês não haverá nenhum pobre” (Dt 15,4): A vida do povo deve ser um sinal da presença de Deus. Quando vê cacos de vidro no chão, você conclui: “Alguém quebrou um copo!” Naquele tempo, quando aparecia um pobre na comunidade, o profeta denunciava: “Alguém quebrou a Aliança!” Pois a Aliança era o compromisso solene de observar os Dez Mandamentos. Quando todos observam os Mandamentos de Deus, não surge pobre, nem poderia surgir. O povo responde à iniciativa de Deus vivendo em comunidade como irmãos e irmãs. Comunidade verdadeira é aquela que, na vivência da Palavra de Deus, revela igualdade, solidariedade e acolhida aos pobres: “Quando houver um pobre em teu meio, que seja um só dos teus irmãos numa só das tuas cidades, na terra que o Senhor teu Deus te dará, não endurecerás teu coração nem fecharás a mão para com este teu irmão pobre; pelo contrário: abre-lhe a mão, emprestando o que lhe falta, na medida da sua necessidade (Dt 15,7-8).
6º Libertação. Deus nos libertou da escravidão no Egito: O Deuteronômio revela que o verdadeiro Deus é aquele que libertou o seu povo da escravidão do Egito e lhe garantiu a vida. Por isso, ele pede que o povo se liberte do culto aos ídolos e adore só o Senhor, o Deus verdadeiro, que prefere a misericórdia e a justiça aos cultos nos lugares altos:
7º Aliança. Compromisso mútuo entre Deus e o povo: O livro do Deuteronômio é o livro da Aliança de Deus com Israel. Foi Deus quem tomou a iniciativa da Aliança. Escrito vários séculos depois do Êxodo, o livro do Deuteronômio afirma: “O Senhor nosso Deus fez aliança conosco em Horeb. Não foi com os nossos pais que o Senhor fez essa aliança, mas com nós que aqui estamos, todos vivos, hoje!” (Dt 5,2-3). Isso significa que, após mais de 600 anos, o êxodo continuava sendo o hoje deles! Na lembrança do povo, os tempos se misturam. O povo volta ao tempo do êxodo e traz o êxodo para o seu hoje. Nós fazemos o mesmo. Cantamos: “O povo de Deus no deserto andava” e acrescentamos: “Também sou teu povo, Senhor, e estou nesta estrada”.
Outro assunto… A presença da violência no texto. Porém, isso faz parte de sua proposta pedagógica. No Deuteronômio temos, lado a lado, as bênçãos e as maldições. Aproximando essas duas posições antagônicas, o autor não diz tudo o que tem para dizer, mas apenas sugere ao leitor tomar uma posição: “De que lado você está?” O autor deixa o sentido em aberto, por conta do leitor, que deve descobri-lo. Assim, com base na proposta de amor e de gratuidade de Jesus, também podemos elencar textos do Deuteronômio que trazem a proposta do amor gratuito. Eis uma lista desses textos que falam do amor de Deus pelo seu povo e mandam não ter medo nunca: Dt 4,35-39: O amor que Deus sempre mostrou pelos antepassados; Dt 5,10: O amor de Deus até a milésima geração; Dt 6,4-9 O mandamento de amar a Deus sempre; Dt 7,7-9: Deus os escolheu não por eles serem perfeitos, mas porque ele os amava; Dt 7,12-13: Deus mantém o amor que jurou aos nossos pais; Dt 10,12-15: Deus só pede que o povo o sirva de todo o coração; Dt 11,1: Amar a Deus sempre e observar o que ele pede; Dt 11,18-23: Colocar as palavras no coração, como faixa ante os olhos, amando o Senhor sempre e Dt 32,10-12: Deus tratou o povo como a menina dos seus olhos.
A grande certeza: Deus nos aceita do jeito que somos, com nossas qualidades e nossos defeitos. Estamos em um longo processo. O apóstolo Paulo diz que tudo foi escrito para nós (Rm 15,4), que tocamos o fim dos tempos, para que possamos aprender a não errar onde nossos antepassados erraram (1Cor 10,6; 2Tm). Como a mãe em casa, Deus nos vai educando e atraindo. Às vezes, a mãe puxa a orelha, mas o amor sempre prevalece e acolhe o filho, quando este mostra boa vontade e arrependimento. Diz o profeta Isaías que a paciência e o amor que Deus tem para conosco são até maiores que a paciência e o amor da nossa mãe (Is 49,15).
Obs. O presente texto é uma síntese do artigo do Frei Carlos Mesters publicado na Revista Pastoral: Publicado em setembro-outubro – ano 61 – número 335 – Pág.: 14-22.